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ANÁLISE

Novela das nove da Globo exclusiva no streaming é só o começo da disrupção

Foto do autor João Emanuel Carneiro, da Globo
João Emanuel Carneiro escreverá primeira novela das nove exclusiva para o streaming (foto: João Cotta/TV Globo)

A Globo surpreendeu a todos nesta quarta-feira (9) com um comunicado à imprensa: Olho por Olho, novela de João Emanuel Carneiro, então cotada para substituir Pantanal na faixa das 21h, seria migrada para o Globoplay e Travessia, de Glória Perez, antecipada. O aviso deixa claro que a intenção é ratificar o posicionamento que as duas novelas são das nove e que ambas serão exibidas de forma simultânea. Ainda que operacionalmente sejam dois produtos separados, a emissora faz questão de posicioná-los como novela das nove.

A estratégia oficial não é divulgada, mas nas entrelinhas é nítido que o canal quer evitar a percepção de que uma foi rebaixada e a outra promovida ou que a imprensa interprete da maneira que quiser — o que poderia gerar um incômodo ao elenco, produção e à própria expectativa que o público tem de cada título. Existem várias leituras que podem ser feitas dessa ruptura, tanto do ponto de vista artístico como de forma macro.

Quem foi rebaixado? Quem foi promovido?

Essa é uma pergunta que cada leitor pode criar a sua resposta — e ela estará certa. Glória Perez terá o bônus de continuar com a visibilidade da TV aberta, um canhão incontestável. Novelas como A Dona do Pedaço, último sucesso das 21h, chegou a alcançar 35 milhões de telespectadores no Brasil. Se apenas o público da novela de Walcyr Carrasco fosse um país, estaria entre os 50 mais populosos do mundo — à frente da Austrália (25 milhões) e próxima do Canadá (38 milhões).

Mas também terá o ônus que poucos roteiristas se sentem à vontade: por ser uma novela, a dedicação do autor é de mais de um ano. João Emanuel Carneiro já revelou em entrevista que, enquanto estava no ar, escrevia 10 horas por dia. Considerando o período de seis meses e que se trata de um trabalho artístico e não operacional, e com grande pressão da sociedade e da emissora, é inevitável o esgotamento emocional.

João Emanuel Carneiro, por sua vez, perde a vitrine que o consagrou com tramas como Avenida Brasil — que alcançou mais de 46 milhões de telespectadores apenas no Brasil, afinal a trama foi exportada para outros 130 países. No entanto, em contrapartida, ganha um espaço que hoje a Globo, diferente de áreas como o jornalismo e entretenimento, está com as torneiras abertas: investimento alto e pouca cobrança (afinal, por serem produtos novos, há uma alta tolerância a erros).

Além disso, o autor escreverá apenas 80 capítulos — praticamente metade dos 155 de sua última novela Segundo Sol e 40% dos 197 capítulos de A Favorita. João Emanuel, que é constantemente criticado pela fragilidade de seus núcleos paralelos e elogiado pelas tramas centrais, terá a chance de apresentar uma novela focando apenas no argumento principal e sem a famosa ‘barriga’.

O ônus de Olho por Olho

Há diversos ônus ao deslocar Olho por Olho para o streaming. Dois deles são claros: a visibilidade e a repercussão. A visibilidade será prejudicada: ainda que os números oficiais de usuários pagantes do Globoplay nunca tenham sido oficialmente divulgados, sabe-se que nem de longe se aproxima da TV aberta. O Globoplay é um produto que está amadurecendo mas ainda muito longe do auge. Caberá a João Emanuel ‘queimar cartucho’ lançando uma novela para um público muito restrito e com alcance limitado.

Também se perderá o fator repercussão. Novelas são produtos que estimulam o senso de comunidade, assim como partidas de futebol e realities. Não raramente as novelas estão nos assuntos mais comentados das redes sociais, onde milhares de pessoas repercutem cenas, bordões ou criam memes. Como todos estão sincronizados, isso faz sentido. Mas em um produto de streaming, o João pode decidir maratoná-lo na primeira hora enquanto a Maria prefere esperar o sábado para assistir e o Pedro opta por acompanhar diariamente: não há engajamento coletivo sincronizado.

Democratização

O alto investimento da Globo no streaming pode gerar, e com certa razão, a imagem de que o canal está em busca da elitização de seu conteúdo — que a vida inteira foi disponibilizado sem custo via TV aberta. Diferente da Netflix e Amazon, que já nasceram com o modelo de negócio de se pagar para ter acesso ao conteúdo, a Globo sempre ofertou o conteúdo de forma gratuita. Em 2020, segundo o IBGE, o rendimento médio per capita foi de R$ 1380.

Assumindo que o plano de entrada do Globoplay custa R$ 24,90 e dificilmente se encontra uma internet banda larga residencial por menos de R$ 50, são necessários pelo menos R$ 75 para se acompanhar “Olho por Olho” (ou 5% de um orçamento já apertado). Um passo antes desse é o acesso à internet: 17,3% dos domicílios brasileiros está desconectada, segundo o IBGE no último estudo publicado em 2019. O mesmo estudo apontou que apenas 3,7% dos domicílios não têm TV. Além da diferença de 13,6 pontos percentuais, que num país de proporções continentais reflete em milhões de domicílios, ainda existe o fato de que a TV é gratuita e a internet precisa ser paga (tanto a conexão como o streaming).

Independência

Por fim, para a Globo, ganhar dinheiro com seu conteúdo pela internet é muito mais interessante que por venda de anúncios. Caso um dia consiga virar a chave e ter a maior parte de sua receita vindo do streaming, os ganhos são diversos. Do ponto de vista jornalístico, a empresa fica menos vulnerável à pressão de patrocinadores, clientes e até mesmo políticos — afinal, ganhando dinheiro com conteúdo, a voz do patrocinador perde força; e ganhando dinheiro em uma plataforma de streaming, deixa de existir a submissão às regulamentações de uma concessão pública e aos responsáveis por criá-las ou fiscalizá-las.

Todo movimento disruptivo precisa ser iniciado por alguém e com algo. A Globo definiu que esse alguém é João Emanuel Carneiro e o algo é Olho por Olho. A aposta pode ou não vingar. Seguindo qualquer manual de inovação, a frequência de testes e pilotos como este só tende a aumentar. Nenhuma ideia será mais considerada absurda: elas serão apreciadas, avaliadas, aplicadas ou não e, em caso de erro, abandonadas com uma rapidez jamais vista. Saudosistas e telespectadores apegados às tradições irão se decepcionar muito com os rumos de agora em diante.

João Gabriel Batista é publicitário, com pós-graduação em Marketing and Sales na Escola de Negócios Saint Paul e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Tem 29 anos e atua com marketing há 11, com passagens por veículos de comunicação, como emissora de TV, rádio e jornal, e multinacionais do segmento de telecom. É analista especial de mercado e negócios no TV Pop, fazendo participações sempre que necessário. Converse com ele por e-mail em [email protected]. Leia aqui o histórico do colunista no site e conheça o seu perfil no Linkedin.

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